A mídia e o silêncio seletivo: como a imprensa trata a violência contra mulheres negras

Janaina Omnirá Gouveia Barreto

janainagouveia11@gmail.com

1. Introdução.

A violência contra mulheres no Brasil não é surpresa para ninguém; não é alarmante ouvir sobre casos violentos ou relatos de agressão direcionados à mulheres. Entretanto, existe uma diferença indubitável e clara parcialidade na maneira que esses casos são tratados, mediados e, finalmente, resolvidos; essa diferença se dá por uma simples característica: a cor da pele da mulher que sofreu a violência, tendo em mente que mulheres negras são as maiores vítimas de violência, mas também as menos ouvidas e visibilizadas. Em fevereiro de 2023, o assassinato de uma estudante universitária branca de classe média alta ocupou por 17 dias consecutivos as capas dos principais jornais brasileiros. No mesmo período, outras 23 mulheres negras foram vítimas de feminicídio no país sem que nenhuma delas recebesse sequer uma breve nota nas editorias de polícia. Essa disparidade não é uma coincidência, mas sim a manifestação de um silêncio seletivo proposital, que revela como a mídia tradicional opera com critérios racializados para determinar quais vidas merecem luto público e quais serão condenadas ao esquecimento.

2. Desenvolvimento.

A seletividade não está apenas no conteúdo da notícia, mas também na maneira como se noticia. A cobertura jornalística sobre casos de violência contra a mulher tende a ganhar destaque quando envolve mulheres brancas, de classes média ou alta, especialmente quando o caso ocorre em grandes centros urbanos. O tratamento dado a esses casos frequentemente envolve investigações aprofundadas, entrevistas com familiares, especialistas e mobilização nas redes sociais. Já quando a vítima é uma mulher negra, de periferia, a abordagem muda drasticamente: ou o caso é noticiado de forma superficial, ou simplesmente ignorado. Esse padrão de cobertura revela um viés racial profundamente enraizado na prática jornalística brasileira. É como se a vida de uma mulher negra valesse menos, não gerasse comoção, não merecesse virar “notícia”. Esse processo de invisibilização é duplamente violento: primeiro, pela violência sofrida; depois, pelo silêncio que a apaga da esfera pública. A mídia, que deveria exercer um papel social de denúncia e promoção da justiça, acaba reproduzindo os mesmos sistemas de opressão que deveria combater. As estatísticas não mentem.

Segundo dados do 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 66% das vítimas de feminicídio são mulheres negras; 58% dos casos de violência doméstica têm mulheres negras como vítimas, e o risco relativo de uma mulher negra ser assassinada é 16% maior que o de uma branca. Apesar de assustadoras, essas estatísticas alarmantes raramente se traduzem em pautas prioritárias nas redações dos grandes veículos. Uma análise realizada pelo Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária da UFRJ revelou que, nas 50 maiores reportagens sobre violência contra a mulher publicadas em 2022 pelos três jornais de maior circulação no país, apenas 22% das matérias tinham como foco casos envolvendo vítimas negras, apesar de estas representarem mais de dois terços das ocorrências reais. É importante notar que a diferença na cobertura vai muito além da mera seleção de casos. Mesmo quando abordados, os crimes contra mulheres negras são tratados com linguagem e enquadramentos distintos: Enquanto vítimas brancas são apresentadas como indivíduos, com nome completo, história pessoal, projetos e rede de afetos, as mulheres negras frequentemente aparecem como “a mulher”, “a vítima” ou, nos casos das periferias, são referidas pelo local de morte, sendo totalmente desumanizadas. Além disso, acompanhamentos prolongados, pressão por investigação e campanhas são disparadamente mais comuns quando as vítimas pertencem a grupos socialmente privilegiados. Esse silêncio seletivo tem uma origem. Primeiro, A falta de diversidade reproduz vieses inconscientes na seleção e tratamento de pautas; Segundo pesquisa da Fenaj (2021), apenas 32% dos jornalistas em cargos de decisão são negros, e menos de 15% são mulheres negras. Ademais, em um contexto de racismo estrutural, ocorre uma naturalização da violência contra corpos negros, sendo visto como algo “esperado”, “natural” e “menos noticiável”, em contraste com a surpresa e indignação quando atinge corpos brancos.

3. Conclusão. Diante de tudo isso, é inegável que o silêncio da grande mídia diante da violência contra mulheres negras não se configura apenas como omissão, mas como cumplicidade. Quando a imprensa escolhe quem pode ou deve ser ouvido, lembrado ou esquecido, ela também decide quais pessoas são importantes, e quais não são. Romper com esse silêncio seletivo é mais do que uma necessidade ética, é um dever social urgente. Dar visibilidade às histórias dessas mulheres, tratá-las com dignidade e reconhecimento, é uma forma de combater não apenas a violência direta, mas também o racismo estrutural que sustenta essa invisibilidade. A imprensa precisa deixar de ser um espelho seletivo da sociedade e assumir, de fato, o seu papel como agente de transformação. Enquanto a dor das mulheres negras continuar sendo silenciada, nenhuma cobertura jornalística poderá se dizer verdadeiramente justa ou completa.

Referências

1. Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) . (2021). Pesquisa sobre a diversidade nas redações brasileiras . Disponível em: https://fenaj.org.br

2. Fórum Brasileiro de Segurança Pública . (2022). Anuário Brasileiro de Segurança Pública . Disponível em: https://forumseguranca.org.br

3. Criola . (2022). Relatório Anual sobre Violência e Racismo . Disponível em: https://criolas.org.br

4. Ribeiro, D. (2019). Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Editora Companhia das Letras.

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