Por Jaqueline Ferreira e Karla Souza
“A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.” Essa é uma das ideias centrais de Maria Beatriz Nascimento que reverbera por toda sua trajetória e obra, ressoando como um canto de identidade, luta e empoderamento.
Nascida em Aracaju (SE), em 17 de julho de 1942, Beatriz e sua família se mudaram para o subúrbio carioca de Cordovil em 1949. Em 1969, ingressou no curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concluindo em 1971. Durante este período, estagiou no Arquivo Nacional e lecionou na rede estadual fluminense.
Beatriz Nascimento foi uma intelectual de destaque no Brasil, abordando a identidade negra como instrumento de autoafirmação racial e cultural. Ela se especializou em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e participou da criação do Grupo de Trabalho André Rebouças e do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Sua militância e pesquisa ajudaram a consolidar a compreensão dos quilombos como espaços de resistência cultural e identidade negra.
Em 1977, durante a Quinzena do Negro na Universidade de São Paulo (USP), a sergipana apresentou a conferência “Historiografia do quilombo”. Ela destacou os quilombos não apenas como locais de refúgio, mas como espaços de resistência cultural, essencial para a identidade negra. Em 1979, viajou à África, onde reforçou a conexão entre as culturas negras brasileira e africana.
Em 1995, quando cursava o mestrado em Comunicação na UFRJ, com orientação do jornalista e sociólogo Muniz Sodré, Beatriz teve a vida brutalmente interrompida. Vítima de feminicídio, a ativista foi assassinada pelo companheiro violento de uma amiga, após aconselhá-la a terminar o relacionamento abusivo. Sua morte precoce, aos 52 anos, interrompeu uma trajetória de luta e contribuição intelectual, mas seu legado permanece vivo, ecoando através das produções que fez, pelas obras sobre sua caminhada e pelas iniciativas que carregam seu nome, conceitos e inspiração.
Em 2021, ela recebeu o título de doutora honoris causa pela UFRJ. No ano seguinte, também foi homenageada com o mesmo título pela UFF.
O quilombo pela ótica de Nascimento: Um conceito de território, ancestralidade, identidade e resistência
Especialista na pesquisa sobre comunidades quilombolas no Brasil, Beatriz aprofundou o conceito de quilombismo, criado pelo intelectual Abdias do Nascimento, compreendendo para além da existência física das comunidades quilombolas; representando uma filosofia e um movimento político de resistência e bem estar da população negra, pensando em um mundo livre da exploração capitalista.
O quilombismo, segundo a pesquisadora, é uma forma de organização social, política e econômica baseada na cooperação, solidariedade e autonomia das comunidades negras. Ela defendia que os quilombos são espaços de resistência contra a opressão racial, econômica e social, e representam uma continuidade da luta pela liberdade iniciada pelos africanos em diáspora. Com seu trabalho intelectual para o reconhecimento e valorização das comunidades quilombolas no Brasil, ela promoveu uma visão de quilombo como um espaço de resistência, liberdade e construção de uma nova sociedade baseada em valores comunitários e de justiça.
A historiadora enxergou os quilombos como locais onde a cultura afro-brasileira é preservada e celebrada, e como um movimento orgânico e autônomo de incidência política por seus direitos, incluindo o acesso à terra, educação, saúde e preservação ambiental.
Vanguarda do feminismo negro
Beatriz é reconhecida como uma das prenunciadoras do feminismo negro. Seu impacto ultrapassa os limites do Brasil, ressoa globalmente, como atesta a ativista e filósofa americana Angela Davis.
Nos anos finais da década de 70 e início dos anos 80, a obra acadêmica de Beatriz Nascimento foi fundamental para compreender as práticas discriminatórias enfrentadas pelas mulheres negras. Ela se destacou como uma voz proeminente no movimento feminista negro, contribuindo significativamente para a visibilidade e fortalecimento dessas mulheres.
Legado e reconhecimento
Após 28 anos do crime que ceifou sua vida, o legado intelectual de Beatriz é reconhecido e amplificado para que tantas outras mulheres negras, indígenas, quilombolas e ciganas, e grupos comprometidos com o combate ao racismo e sexismo em geral. A vida e obra de Beatriz nos ensina sobre a importância da memória, da auto enunciação e construção de narrativas para os povos vítimas dos processos de colonização.
Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento:
Criada pelo Odara – Instituto da Mulher Negras, a Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento (EBN) busca contribuir para o fortalecimento político e organizacional de grupos, coletivos e de mulheres negras individualmente, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. O projeto integra o Programa de Educação e Formação Política do Odara, junto ao Projeto Ayomide Odara, atuando em frentes de incidência política nas lutas das populações negras pelo acesso e permanência em espaços de Educação.
“Compreendemos que a formação é um forte instrumento e arma de luta. A EBN promove espaços de formação, trocas de experiências e articulação de ações a fim de qualificar a incidência política das mulheres negras em seus territórios de atuação e em todo o Brasil,” comenta Lorena Cerqueira, coordenadora da Escola Beatriz Nascimento. Hoje, a Escola apresenta uma turma com 70 mulheres diversas em suas origens, faixa etária, escolaridade, profissões, corporeidades e sexualidades.
Lorena também refletiu que Nascimento, como mulher negra nordestina, ativista e educadora, certamente se alegraria ao ver seu legado continuado. Cerqueira finaliza a reflexão sobre a herança que Beatriz Nascimento deixou parafraseando a pesquisadora dita no documentário Orí: “É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos.”
Beatriz Nascimento Foundation:
A Fundação Beatriz Nascimento é uma organização sem fins lucrativos sediada em Nova York (EUA) dedicada a liderar as Artes e a Educação. Fundada por Bethânia Nascimento, filha da ativista, a organização fomenta a diversidade social e cultural através de suas iniciativas.
Atlânticas – Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência:
Através de sua vasta pesquisa e contribuição ao Movimento Negro Brasileiro, novos intelectuais se formaram e deram continuidade ao seu legado, criando em 2023, o Atlânticas – Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência, que deve fortalecer os espaços acadêmicos no Brasil e no exterior para novas doutorandas.