Dia da Visibilidade Lésbica
Por Jaqueline Ferreira e Karla Souza
29 de agosto é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, data crucial na luta contra a lesbofobia e pela promoção da visibilidade e dos direitos, incluindo o amor. Criada em 1996, no Rio de Janeiro (RJ), durante o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), a data compõe o Agosto Lésbico, que conta com outra dia marcante, o do Orgulho Lésbico, comemorado no dia 19 de agosto e que faz referência ao “Stonewall brasileiro”, acontecido em 1983. Na data, mulheres lésbicas protestaram contra a proibição de distribuir o Boletim Chanacomchana, um informativo lésbico, em um bar frequentado pela comunidade LGBTQIAPN+ em São Paulo (SP).
Anos depois deste marco, ativistas lésbicas se organizaram e criaram o 1º Senale. Por conta desta mobilização, a sigla LGBTQIAPN+ se inicia com a letra “L”, para combater a invisibilidade sofrida por lésbicas dentro da própria comunidade.
“O Dia da Visibilidade Lésbica é mais um dia para gente colocar as nossas pautas e as nossas demandas na rua, falar sobre quem somos, os nossos afetos, a nossa forma de amar, de nos relacionar”, defende Alane Reis, editora da Revista Afirmativa e coordenadora do Programa de Comunicação do Odara – Instituto da Mulher Negra.
Naiara Leite, que também é ativista do Movimento de Mulheres Negras, coordenadora executiva do Odara e casada com Alane, reforça a importância da data e traz a necessidade constante de agregar a luta contra a lesbofobia ao combate ao racismo. “O nosso levante, afirmação e luta, enquanto lésbicas negras, fortalece o movimento LGBTQIAPN+ e a comunidade negra como um todo. Nós, lésbicas negras, nas diferentes frentes de luta política, apontamos caminhos para pensar a defesa dos direitos humanos para todos os grupos sociais.”
O amor entre mulheres negras, como no caso de Alane e Naiara, é um ato político e revolucionário que desafia a centralidade do racismo patriarcal. Mulheres negras que se amam confrontam o racismo, a misoginia e a heterossexualidade compulsória, que tentam invisibilizar e marginalizar essas relações.
Lesbofobia em números
No Brasil, as lésbicas enfrentam desafios diários, desde a violência física até a exclusão social e a falta de proteção legal. Apesar dos esforços dos movimentos sociais, a invisibilidade das lésbicas ainda se mostra como uma barreira a se quebrar. Fato disso é a ausência de dados e informações sobre como as violências atingem a comunidade. Geralmente as estatísticas são relacionadas a comunidade LGBTQIAPN+ como um todo, ou baseadas em recortes específicos que também expõe a violência contra outros grupos minoritários.
Entre 2015 e 2022, os registros de agressões contra este grupo subiram 50%, segundo dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan). As formas de violência mais comuns incluem assédio moral e sexual, agressões físicas e a chamada “violência corretiva”, onde a vítima é submetida a estupro com a intenção de “corrigir” sua orientação sexual. Tais crimes são perpetuados tanto por estranhos quanto por membros da própria família.
As leis de proteção à população LGBT+ no Brasil, como o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo e a equiparação da LGBTfobia ao racismo pelo Supremo Tribunal Federal em 2019 tornando crime, são avanços significativos, mas sua aplicação ainda é falha. A omissão do Estado e a falta de treinamento adequado para policiais e agentes públicos resultam em uma proteção insuficiente.
O LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil, realizado em 2022, também traz à tona a violenta realidade enfrentada por essas mulheres. Com a participação de 22 mil lésbicas, o levantamento revelou que 78,61% das entrevistadas já sofreram algum tipo de violência lesbofóbica. Dentre essas violências, o assédio moral foi o mais comum (31,36%), seguido de perto pelo assédio sexual (20,84%) e pela violência psicológica (18,39%).
Um dos dados mais preocupantes do LesboCenso é o índice de lesbocídio. Cerca de 6,26% (equivalente a 1.377) das participantes relataram conhecer mulheres lésbicas que foram assassinadas devido à sua orientação sexual ou expressão de gênero. “O racismo também garante que a maioria destas vítimas sejam negras e pobres, em condições de vulnerabilidades no acesso a trabalho e sem acolhimento familiar”, comenta Naiara.
O LesboCenso também aponta que as violências são frequentemente perpetradas por familiares, com 29,32% das agressões sendo cometidas dentro de casa, especialmente por mães (9,92%) e outros parentes próximos (8,36%). Esses números demonstram a gravidade da situação e a urgência de avanços legislativos que garantam maior segurança e proteção à comunidade lésbica.
“Infelizmente, na maioria das vezes, é no contexto familiar que sofremos as principais violências. Muita vezes elas partem de homens de nossas famílias que tentam nos controlar, nos coagir, e fazem isso a partir da violência física, da violência psicológica, da violência sexual e o Estado não tem um mecanismo que consiga coibir essa violência,” reflete Alane.
O Dossiê Sobre Lesbocídio no Brasil, produzido pelo Grupo de Pesquisa Lesbocídio, revela em as “Histórias que Ninguem Conta”, um perfil perverso da violência contra as mulheres lésbicas no país. O estudo aponta que ao longo dos anos, o assassinato de mulheres lésbicas, em sua maioria, negras, só cresce. De 2014 a 2017 houve o aumento de 237% no número de casos, chegando a 126 assassinatos. Nesta conta, o Nordeste registrou 30% dos casos, atrás apenas da região sudeste, no topo do ranking com 33%.
Nos últimos anos, lesbocídios emblemáticos aconteceram no Nordeste, o que desencadeou um Levante Nacional Contra o Lesbocídio em várias capitais do país. Em maio de 2024, o casal Jakeline Galdino da Silva e Gilmara de Almeida Lopes foi morto a tiros em Campos Sales (CE). Em dezembro de 2023, Ana Caroline, de apenas 21 anos, foi brutalmente assassinada, tendo partes do corpo arrancadas, na cidade de Maranhãozinho (MA). Outros casos são marcantes na história do país, como o de Luana Barbosa, mulher negra da periferia de São Paulo (SP), agredida e assassinada por três policiais, a poucos metros de sua casa.
Lésbicas, negras e nordestinas
O contexto é ainda mais agravante quando estas mulheres são atravessadas por questões raciais e regionais. Para Alana Reis, há uma invisibilidade enfrentada pelas lésbicas negras dentro do movimento LGBTQIAPN+, que é dominado por homens gays brancos, e também dentro do próprio movimento lésbico, onde o racismo prevalece devido à hegemonia das mulheres brancas. “Tratar da visibilidade lésbica para nós, que somos lésbicas […] negras do Nordeste, é também tratar dos atravessamentos que o racismo em alinhamento com a lesbofobia nos traz.”
Alane destaca ainda que a combinação de racismo e lesbofobia aumenta significativamente as chances dessas mulheres serem vítimas de violências.
Naiara avalia que no Nordeste, o racismo patriarcal – que é por essência cisheteronormativo, intensifica a exclusão, invisibilidade e violência contra lésbicas negras, determinando um cenário de negação desde cedo, seja na escola, no mercado de trabalho ou no acesso à saúde. Essa realidade cria um ciclo intergeracional de subalternidade, dificultando o acesso a direitos e a representação institucional, inclusive em contextos como o período eleitoral. “Vivemos um contexto de ódio, do conservadorismo e de agudização do racismo patriarcal cis heteronormativo”, denuncia.
Essa falta de acesso a políticas públicas específicas, geradas pela invisibilização deste grupo, se perpetua em áreas como a saúde, por exemplo. Alane lembra que existem inúmeros mitos em torno da sexualidade das mulheres lésbicas, como a crença equivocada de que não é possível contrair ISTs ou DSTs através do sexo entre mulheres, o que leva muitas lésbicas a subestimarem o risco de contágio. Ela também observa que as dificuldades relacionadas aos direitos sexuais e direitos reprodutivos são agravadas para lésbicas negras e pobres, particularmente em questões como reprodução assistida e adoção.
O Movimento de Mulheres Negras e as Lésbicas Negras
Para enfrentar este contexto, organizações como a Candaces – Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas! e a Sapato Preto Amazônida desempenham um papel crucial na defesa dos direitos das lésbicas negras. Estas organizações oferecem espaços sociais de acolhimento entre lésbicas, promovem formações políticas desta comunidade, atuam na incidência política para o enfrentamento à lesbofobia e o racismo, e promovem campanhas de visibilidade e conscientização. No entanto, a atuação dessas entidades, embora vital, não substitui a responsabilidade do Estado em garantir a segurança e os direitos destas mulheres.
Alane e Naiara também destacam que historicamente o movimento negro e de mulheres negras tem sido constituído sob a liderança de muitas lésbicas negras. “Atualmente grande parte das organizações de mulheres negras do Nordeste têm sido lideradas por LBTs negras que tem ampliado cada vez mais o debate sobre nossas identidades”, aponta Naiara Leite.
Assim, a luta das lésbicas negras por viver e amar com liberdade é essencialmente uma caminhada coletiva, e o movimento negro e de mulheres negras, que é um movimento essencialmente revolucionário, tem que estar atento ao compromisso de romper com a invisibilidade”.
“E nomes de inspiração é que não faltam: Heliana Hemetério, Valdecir Nascimento, Neusa das Dores, Nilma Bentes, são algumas das diversas lideranças históricas do Movimento Negro que são lésbicas e abriram caminhos para que nós, de gerações seguintes, tenhamos orgulho de ser quem somos e dizermos ‘sim, amamos mulheres’, ‘sim, somos sapatonas!’”.