O seminário reuniu ativistas negras de diversos estados do Nordeste para reforçar o enfrentamento à violência contra mulheres negras e mobilizar para a 2ª Marcha Nacional em 2025
Na última quarta-feira, 27 de novembro, aconteceu em São Luís (MA), o Seminário Regional “Acesso à Justiça Pela Vida das Mulheres Negras: Enfrentando a Violência Doméstica, Familiar e o Feminicídio no Nordeste”, parte da III Jornada pela Vida das Mulheres Negras do Nordeste. O evento reuniu ativistas, representantes do Sistema de Justiça, lideranças de movimentos sociais e especialistas para discutir estratégias de enfrentamento às múltiplas violências que atingem mulheres negras na região.
Organizado pela Rede de Mulheres Negras do Nordeste (RMNN), o seminário foi realizado pela Rede de Mulheres Negras do Maranhão (REMNEGRA) e o Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa, no auditório da Escola de Saúde Pública do Maranhão, no Centro Histórico de São Luís, e destacou a importância de combater o racismo, o sexismo e a violência institucional, além de propor articulações de políticas públicas especialmente pelo Sistema de Justiça, para ampliar a proteção e os direitos das mulheres negras.
Participaram do encontro militantes, ativistas e profissionais de diversos os estados do Nordeste. Foram mais de 80 inscritas.
Violência contra mulheres negras: uma pauta urgente
Dados alarmantes sobre feminicídios e violências domésticas expõem o racismo e a falta de acesso à justiça para mulheres negras no Brasil. Na última segunda-feira (25), Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, a ONU Mulheres e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) divulgaram dados vergonhosos que evidenciam a violência contra as mulheres. Segundo os números de 2023, 140 mulheres e meninas são mortas por dia por alguém da sua própria família — uma a cada 10 minutos — totalizando 85 mil por ano no mundo todo.
Para Áurea Borges, da REMNEGRA, o seminário reforça a urgência de priorizar a vida das mulheres negras. “Para nós, é de suma importância termos um espaço como esse. Primeiro, porque reafirmamos algo inerente à nossa luta: a defesa inabalável e inarredável pela vida das mulheres negras. Marchamos por muitas coisas, mas sem a vida, sem estarmos vivas, não conseguiríamos marchar. A vida é a ordem do dia. Abaixo toda e qualquer violência”, enfatizou.
Áurea também destacou a ancestralidade como peça central na luta por justiça. As mulheres negras precisam estar unidas e sólidas para vencer o patriarcado racista. “A gente toma emprestado toda a nossa ancestralidade, a vida que acontece nos terreiros, nas religiões de matriz africana, e também a questão dos nossos irmãos indígenas. Isso nos ensina que a vida é o ser principal, e essa vida acontece de forma circular conosco e com todos os elementos que compõem esse espaço. Já estamos organizadas em marcha para novembro de 2025”, acrescentou.
Invisibilidade e acesso negado
A programação trouxe a relação entre racismo e feminicídio nos debates, além de discutir como a justiça pode trabalhar para frear essas violências. Um dos pontos levantados por Cláudia Gouveia, também ativista da REMNEGRA, foi a invisibilidade das mulheres negras nos dados sobre feminicídio e a dificuldade de acesso a políticas públicas eficazes.
“Infelizmente, fala-se de feminicídio como se esse lugar não tivesse cor. Mas sabemos que são mulheres negras, muitas vezes da periferia, que não conseguiram chegar ao Sistema de Justiça por falta de acesso a essas políticas públicas. Trazer essa discussão ao Maranhão, envolvendo delegadas e defensoras, é fundamental porque entendemos que cada grupo pode disseminar esse tema no seu cotidiano e militância, levando e cobrando do Sistema de Justiça que entenda que essa mulher tem cor”, destacou.
Nesse mesmo sentido, Lúcia Azevedo, organizadora do evento e membro da REMNEGRA, afirmou que o seminário fortaleceu discussões urgentes dentro do movimento. “O seminário só reafirmou, confirmou as reflexões que temos feito nos espaços de controle social e de incidência política quando discutimos a violência contra as mulheres negras. Nos órgãos e serviços, impera a invisibilidade, a não análise e não comprometimento com os dados e as estatísticas que apontam que são nossos corpos negros (que mais sofrem)”, afirmou.
Para a socióloga Silvia Leite, membro do Fórum Maranhense de Mulheres e do Setor de Atividades Especiais Espaço Mulher (SAEEM), a rede de atendimento à mulher tem criado alternativas para combater essa invisibilidade e de fato prestar o apoio necessário e especializado às vítimas negras. Durante o seminário, Silvia trouxe uma experiência relevante de 11 anos de atuação à frente do SAEEM. Para ela, além de atender, é preciso acolher as vítimas no Sistema Único de Saúde (SUS).
O estado precisa investir em capacitação humanizada e solidária que valorize as vidas negras. Silvia afirma ainda que o conhecimento só tem sentido se ele for compartilhado: “Tivemos que convencer os colegas a mudar o olhar, de não achar que a violência é natural. Tivemos que trabalhar com os médicos, porque eles achavam que era só fazer o atendimento. Precisamos despertar a empatia, o respeito e a solidariedade”.
A vice-prefeita de São Luís (MA), Esmênia Miranda, também participou do evento e destacou que só é possível construir políticas públicas por meio da apresentação de dados, que indicam onde mudanças devem ser aplicadas para beneficiar a população.
“Percepção a gente consegue ter, mas é tudo muito subjetivo. Precisamos ter dados que venham dos mais diversos organismos que fazem o atendimento de mulheres vítimas de violência, especificamente mulheres negras, para que essas políticas de fato aconteçam”, afirmou Miranda durante a Roda de Abertura.
Políticas públicas insuficientes
Rayanne Vieira, do Instituto Negra do Ceará (INEGRA), trouxe a perspectiva do estado, destacando a implementação de iniciativas como o projeto Empodera, que capacita mulheres vítimas de violência para se tornarem microempreendedoras, mas que ainda não têm sido suficientes.
“Sabemos que um dos fatores dentro da violência doméstica que levam ao feminicídio é a dependência financeira. Infelizmente, as políticas públicas do Estado do Ceará têm se limitado a este pilar. Os Centros de acolhimento estão lotados. Se não fossem iniciativas da sociedade civil, ONGs e movimentos sociais, muitas mulheres não seriam acolhidas”, lamentou.
Rayanne também alertou para o alto índice de assassinatos de mulheres trans no Ceará, geralmente marcados por extrema violência. “Isso reflete a educação punitivista e violenta, tanto a partir de armas de fogo como do crime organizado, que tem estabelecido nos nossos territórios sua própria organização, com seus próprios direitos e deveres, inclusive para os próprios moradores”, alertou.
A proteção das mulheres em risco: o papel da justiça
A juíza Lúcia Helena Barros Heluy da Silva, titular da 2ª Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de São Luís (MA), também participou do encontro compartilhando sua visão sobre a proteção das mulheres em situação de risco e a recente alteração na Lei Maria da Penha.
“É chegar naquele conflito e colocar aquelas pessoas para se separarem, até que o conflito seja solucionado, até que a mulher esteja em segurança. Enquanto a mulher estiver em situação de risco, não tem prazo para medida protetiva. Essa mulher pode chegar e dizer, ‘eu continuo’. E o juiz tem que ouvir e saber quais são os riscos que ela está correndo. E aí vai se estabelecendo a proteção da mulher. Isso é contínuo, não é só uma decisão. É um mecanismo de proteção. E esse é o meu trabalho”, declarou.
A juíza também destacou a importância da aproximação com mulheres indígenas e outras populações vulneráveis, enfatizando a necessidade de ações que garantam um contexto seguro e livre de violência.
A contribuição das religiões de matriz africana
O papel das casas de matriz africana na luta contra a violência foi reforçado no seminário por Pai Mariano Frasão, do Ilê Ewé Òwó d’Ossanha. Ele ressaltou que nunca houve registro de feminicídios dentro desses espaços no Maranhão, mas que é necessário sensibilizar os homens de terreiro para que a proteção à vida se amplie para toda a sociedade.
“Precisamos buscar os homens para que participem dessas conversas. Não basta isso não acontecer só dentro dos terreiros; precisamos mudar a realidade na sociedade como um todo. Os homens ainda veem esse sistema machista, acham que detêm o poder, que dominam e que as coisas só acontecem se for do jeito deles. Acho que precisamos mudar essa realidade e buscar formas de sensibilizar esses homens, mostrando que a mulher precisa ser respeitada. Vidas negras importam e precisam ser respeitadas”, afirmou.
Pai Mariano também destacou a força da ancestralidade feminina, que valoriza o poder das mulheres na sociedade. “A terra é feminina, a água é feminina. As bases que sustentam a nossa sociedade vêm de uma essência feminina. Precisamos conviver com isso e buscar essa importância para entender o valor das mulheres em nossas vidas”.
MULHERES NEGRAS EM MARCHA
A 3ª Jornada pela Vida das Mulheres Negras do Nordeste, alinhada aos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, reafirma o compromisso inabalável dos movimentos de mulheres negras em transformar essa dura realidade. Como destacou Áurea Borges: “A gente precisa cada vez mais colocar a vida da mulher negra como prioridade. Sem vida, não há marcha. E sem marcha, não há transformação”.
Este grito pela vida não se encerra aqui. A força do movimento de mulheres negras do Nordeste já está pulsando rumo à 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, que acontecerá em 2025, em Brasília, com o objetivo poderoso de mobilizar 1 milhão de mulheres negras.
Para fortalecer essa caminhada, nos próximos dias, o Encontro Regional, que será realizado em Recife entre 6 e 8 de dezembro, reunirá lideranças, militantes e ativistas de toda a região. Este será mais um espaço estratégico de articulação política, de construção coletiva e de reafirmação da luta por justiça, direitos e vidas dignas para todas as mulheres negras.
A Jornada, que se encerra no próximo dia 30 de novembro, deixa uma mensagem firme e contundente: as mulheres negras não recuam. Seguiremos nas ruas, nas redes e nos espaços de decisão, cobrando políticas públicas eficazes, rompendo a invisibilidade e construindo redes de solidariedade e resistência. Brasília nos espera, e a marcha já começou!