Sobre a criação de um Fundo Feminista do Nordeste, nós, Mulheres Negras, avisamos: Nada sobre nós, sem nós!

“O imperialismo racial branco garantiu a todas as mulheres brancas, independente do quão vitimadas eram pela opressão sexista, o direito de assumir o papel de opressora em relacionamentos com mulheres negras e homens negros”.

bell hooks

A Rede de Mulheres Negras do Nordeste, articulação de organizações do Movimento de Mulheres Negras, que desde de 2013 é atuante nos nove estados da Região Nordeste, composta por 35 organizações de mulheres negras da região, vem a público manifestar nossa profunda indignação diante das informações recebidas sobre a realização de uma pesquisa para refletir sobre a viabilidade da constituição de um Fundo Feminista no Nordeste.

A pesquisa está sendo desenvolvida sob a coordenação  de um conjunto de organizações, quase todas de feministas brancas, todas de Recife (PE), com a participação apenas de uma organização negra do mesmo local e duas com atuação nacional. Vale destacar, que a pesquisa também está sendo realizada por pesquisadoras brancas vinculadas a estas organizações.

Enquanto a Rede de Mulheres Negras do Nordeste tem atuado  há 11 anos,  em toda região, para ampliar e fortalecer a incidência política contra as desigualdades de raça e gênero, incluindo a mobilização da filantropia para conhecer as organizações políticas das mulheres negras, suas demandas, estratégias, impactos e importância para todas as mulheres da região; enquanto isso, a iniciativa para diálogo e construção de um Fundo Feminista no Nordeste vem sendo articulada sem nenhum diálogo com os Movimentos de Mulheres Negras da região.

Uma das estratégias que a Rede tem utilizado está centrada na potencialização de narrativas que rompam com a  invisibilidade histórica e o preconceito sobre as formas de fazer política dos nossos movimentos. O olhar preconceituoso e racista do feminismo branco, hegemônico e da esquerda branca brasileira sempre considerou a nós e a nossas iguais “como base”, sugerindo que nosso fazer político é menor, sem acúmulo intelectual e por isso supostamente precisamos ser conduzidas e direcionadas por feministas brancas.

O Nordeste é uma região que reflete o racismo, o patriarcado, a misoginia  e a forma desigual como o Estado brasileiro decidiu conduzir este país. Neste território, testemunhamos as mais profundas desigualdades, impacto dos processos de colonização e quase 400 anos de escravização, considerando que é aqui onde se concentra a maioria da população negra e de mulheres negras do país. É neste território que mazelas sociais são mais recorrentes. Convivemos com a letalidade do Estado e altos índices de feminicídios. São nos nossos estados onde se concentram a maioria das pessoas atendidas pelos programas sociais de combate à fome e à pobreza, de transferência de renda, assim como os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica; e estas, como nós, são quase todas mulheres  negras.

Historicamente neste território vimos crescer as formas mais expressivas e seculares de organização política de mulheres no Brasil, e estas também são quase todas negras, a exemplo da Irmandade da Boa Morte, das lideranças quilombolas que enfrentaram a ordem colonial, como Esperança Garcia, Dandara de Palmares, Luiza Mahin,  Maria Felipa e tantas outras, que lutaram pela expulsão dos português dos nossos territórios.

Estamos vivendo um cenário crucial de debates e reflexões sobre Reparação para as populações negras no mundo e sem dúvida o Brasil será estratégico e importante nesses debates. No âmbito nacional, as mulheres negras brasileiras estão construindo a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver (2025), a segunda Marcha Nacional de Mulheres Negras, com participação massiva das mulheres negras do Nordeste e da Amazônia.

Como ignorar tudo isso no processo de construção de um Fundo Feminista na região?

Será este Fundo mais uma estratégia de subalternizar as mulheres negras?

A leitura das feministas antirracistas é de que as mulheres negras devem continuar  sendo “base” de  suas pautas?

Nos surpreende escutar noticias sobre a criação de um Fundo Feminista no Nordeste sem haver o reconhecimento da Rede de Mulheres Negras do Nordeste e de tantas outras organizações de Muheres Megras neste processo. Em tempos de ódio e fascismo, como não se posicionar diante de fatos como estes?

Diante de tudo isso, expomos nossa indignação e repúdio com a forma desrespeitosa como este processo vem sendo construído; pela hipocrisia do que esse processo revela sobre a relação do feminismo branco com a luta contra o racismo, o patriarcado e suas múltiplas expressões; e pela tentativa de apagamento da luta histórica e organização política das mulheres negras no Nordeste.

Nada sobre nós, sem nós!

Compartilhe:
Rolar para cima